A linguagem molda nossa realidade

Não serve só para pedir bebidas quando você vai de férias. Embora seja útil.

Eu era uma daquelas crianças que tinha que contar até dez em diferentes línguas enquanto eu escovava os dentes. Não é surpresa, então, que, quando fui para a universidade, tenha escolhido estudar francês e espanhol. Não posso dizer que trabalhei muito duro; embora tenha morado em Paris e depois em Barcelona, ​​onde tive ampla oportunidade de me entregar a pelo menos alguns dos meus muitos vícios.

De certa forma, é uma pena que não me perguntem mais o que pretendo “fazer” com meu diploma em línguas, já que só agora, depois de cerca de uma década refletindo sobre o assunto, tenho uma resposta satisfatória. Sempre me incomodei com a ideia de que a linguagem fosse apenas uma “ferramenta” — um meio de pedir informações, pedir vinho ou pechinchar com um lojista. Reduzir a linguagem ao mero uso me deprimia, assim como me deprime ouvir as pessoas dizerem que a IA tornará o aprendizado de línguas inútil. Pois a linguagem não é apenas algo para ser usado. Ela molda a maneira como percebemos e vivenciamos o mundo.

Reduzir a linguagem ao mero uso me deprimia, assim como me deprime ouvir as pessoas dizerem que a IA tornará o aprendizado de idiomas inútil.

Isto, é claro, não é uma visão nova. Edward Sapir e Benjamin Whorf, que ficaram famosos pelo filme A Chegada , propuseram que a estrutura da linguagem informa o estilo de pensamento e a visão de mundo de seus falantes e que, portanto, a linguagem determina como vemos o mundo. Mas os gregos antigos os anteciparam, como os gregos antigos tendem a fazer. Platão sugeriu em seu diálogo com Crátilo que certas concepções da realidade estão embutidas na linguagem. O romântico alemão do século XVIII Johann Georg Hamann também (curiosamente apelidado de “O Mago do Norte”) prefigurou Sapir e Whorf, escrevendo que “os lineamentos da linguagem [de um povo] corresponderão […] à direção de sua mentalidade”.

Considere como pensamos sobre o tempo. Falantes de inglês tendem a falar sobre ele como se fosse uma linha horizontal, com o passado atrás de nós e o futuro à nossa frente. Mas falantes de aimará, uma língua nativa dos Andes, veem o tempo de forma inversa. Para eles, o futuro, sendo desconhecido, está atrás deles, já que não conseguem ver o que está atrás deles. O passado está à frente deles, já que conseguem ver o que está à sua frente. Para os falantes de aimará, o tempo é algo que passa por nós. Nós não nos movemos através dele.

Falantes de aimará, uma língua nativa dos Andes, veem o tempo de outra forma.

Um exemplo comumente citado em conversas sobre relatividade linguística é a compreensão russa de “azul”. O russo distingue entre azuis mais claros (‘голубой’) e azuis mais escuros (‘синий’), e pesquisas sugerem que, devido a essa diferença linguística, os russos percebem esses dois tons como mais distintos do que nós. A linguagem, portanto, influencia não apenas o pensamento, mas também a visão.

É discutível se os falantes de Guugu Yimithirr, uma língua aborígene da Austrália, têm um melhor senso de navegação por causa de sua língua. Meu palpite é que sim. Enquanto nós (falantes de inglês) usamos esquerda e direita, para frente e para trás, os falantes dessa língua usam norte, sul, leste e oeste. Para isso, eles precisam saber onde fica o norte o tempo todo. Portanto, parece que eles se orientam com mais destreza do que nós.

Enquanto nós (falantes de inglês) usamos esquerda e direita, para frente e para trás, os falantes desta língua usam norte, sul, leste e oeste.

A existência de palavras e frases em algumas línguas, mas não em outras, parece sugerir, pelo menos, que algumas culturas sentem certas emoções com maior profundidade ou força do que outras. Os portugueses têm a bela palavra “saudade” (imortalizada pela grande Cesária Évora, conhecida por gostar de um cigarro e uma bebida durante os intervalos), que descreve um profundo anseio por alguém ou algo que se torna ainda mais doloroso pela consciência de que talvez nunca mais o encontremos. A expressão japonesa “mono no aware” descreve uma sensibilidade requintada ao transitório, vista de forma mais vívida no viver e morrer das coisas no mundo natural.

Aprender outro idioma não significa apenas se virar um pouco melhor quando você sai de férias. É aprender a perceber o mundo de forma diferente: pensar diferente, sentir diferente, até mesmo ser alguém diferente — ou, pelo menos, alguém com uma perspectiva mais ampla sobre o mundo. E isso, por sua vez, lança luz sobre sua língua nativa, sua cultura e você.

Fonte: Medium
Por: Harry Readhead

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